Paulo Afonso, 30 de abril de 2024

Janio Ferreira Soares

Poemas que nascem da chuva

A história é velha, mas vale um bis. Conta Fernando Sabino que ele, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga (“três condenados à crônica diária”) costumavam se ajudar quando faltava assunto pra produzir seus textos. Numa dessas ocasiões, detalhada em “O estranho ofício de escrever”, Rubem lhe perguntou: “Será que você teria aí uma crônica pequenininha pra me emprestar?”, no que Sabino, já pensando na torna, lhe mandou “O preço da sopa”, contando o caso de um menino que lhe pedira um cruzeiro pra tomar uma que custava exatamente esse valor numa espelunca da Lapa.

Como grande mestre-cuca que era, Rubem então lhe acrescentou alguns ingredientes, elevou o pardieiro à condição de restaurante, aumentou seu preço pra cinco cruzeiros e saciou seus famintos leitores publicando-a sob o título de: “A sopa”.

Tempos depois, foi a vez de Sabino lhe pedir emprestado um de seus famosos quitutes. E após ouvir do capixaba um “vou ver o que posso fazer”, recebeu de volta sua requentada crônica com o malandro argumento de que “as outras estão muito gastas”. Mas como todo bom mineiro tem sempre um torresmo guardado na manga, ele então a refogou com umas folhas de ora-pro-nóbis no azeite, dobrou seu preço pra dez cruzeiros e liquidou de vez o assunto, dando-lhe o sugestivo título de: “Essa sopa vai acabar”.

Pois bem, sem ninguém pra me emprestar sequer um insosso caldo de chuchu, só me resta lhe servir esse escalfado repleto dos temperos que colho no entorno do meu condado, enriquecido por uma bela gema caipira boiando entre coentros e vírgulas, que deve ser bebido bem naquela estranha hora em que nem a noite se decide escura, nem a tarde se convence de que é hora de partir.

Dito isto, semana passada, depois de uma inesperada chuva, o barulho das suindaras no telhado me despertou antes dos pardais. Ainda no escuro, iniciei minha peregrinação matinal que consiste em dez passos até o banheiro, seguidos de mais trinta e quatro até o começo dos quinze degraus que me levam a uma pequena curva à esquerda de quem desce, onde de lá dou mais dezenove chineladas até finalmente abrir a porta que me joga na cara versos fixos e poemas de ocasião.

Por fixos entenda-se um pacato rio, que se de manhã reflete garças e gradações do céu, de noite centelha a lua se ela for cheia, ou dorme breu se ela minguar. Em seguida, um vasto horizonte cheio de torres e fios leva a energia das hidroelétricas, que entre outros benefícios tem o dom de restituir à vida do Deus de led, cujo brilho da luz entorpece olhos e estanca a sangria desatada de viciadas mãos.

Já os inesperados poemas, esses dependem da cumplicidade do tempo, como agora, quando a chuva embranqueceu de flores os galhos das juremas, que por apenas três dias encantaram os que nunca viram neve e iludiram os abonados a enxergarem pedaços de Aspen nesse sertão de Ariano, de Graciliano e, só pelo prazer de fazer parte da rima, deste velho Janio.

 

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