Paulo Afonso, 25 de abril de 2024

Janio Ferreira Soares

Gil já era entidade antes de ser imortal

Seguindo um conselho de Claudio Leal, afiadíssimo escriba da nova geração de baianos com a pegada daqueles que batucavam maravilhas em suas Remingtons e Olivettis, este ribeirinho ia escrever sobre “Vento Vadio”, mais um belo livro que reúne 185 crônicas de Antônio Maria, gigante pernambucano com 120 quilos de talento e boemia.

Mas aí, diante da eleição de Gil pra Academia Brasileira de Letras – e após ler uma matéria do próprio Claudinho sobre ele na Folha de São Paulo -, tive que girar a luneta pro nosso Pai Véio, que foi como o saudoso baixista Artur Maia o chamou num delicioso caso ocorrido há mais de 20 anos, que conto no fim. Antes, uma doce lembrança acontecida no mesmo 23 de junho de 2001, quando tive o prazer de trazê-lo pra se apresentar aqui bem na noite das fogueiras de São João.

Na época ele aproveitou a viagem pra gravar cenas que comporiam o documentário “Viva São João”, dirigido por Andrucha Waddington, fato que se deu na linda tarde do dia do show, quando todos seguiram pra Ilha do Urubu, um belíssimo cenário onde encontra-se a hidrelétrica de Angiquinho, inaugurada em 1913 pelo visionário Delmiro Gouveia. E aí, de posse dessa preciosa informação, peguei Helinho Gadelha e mestre Jackson, dois velhos companheiros que também já dormiram num sleeping-bag, e fomos pra lá.

Ao chegarmos, uma inesquecível cena. Sozinho, empunhando o violão e em profundo silêncio, Gil contemplava a imensidão dos cânions, certamente tomado pelo mesmo alumbramento que Castro Alves e D. Pedro II tiveram diante das cachoeiras, cujas águas, na ocasião ainda livres das barragens, roncavam soltas pelos paredões como larvas frias de um majestoso vulcão.

Em seguida, ele cantou a música de Luiz Gonzaga e Zé Dantas em homenagem à construção das usinas, que diz: “Delmiro deu a ideia/ Apolônio aproveitou/ Getúlio fez o decreto/ e Dutra realizou”. E como ela, infelizmente, não entrou no documentário, somente os urubus rasgando o vento e “los três amigos” tiveram o privilégio de vê-lo seguir cantando: “Olhando pra Paulo Afonso/ eu louvo nosso engenheiro/ louvo nosso cassaco/ caboclo bom verdadeiro”.

À noite, já com as fogueiras acesas nas calçadas, ele arrematou: “Olha pro céu meu amor, veja como ele tá lindo”, no que uma garota gritou da plateia: “Lindo é você, meu preto!”. Isso porque ela não o viu sob a tarde lilás, envolto pelo invisível halo lunar que só os Budas nagôs têm.

Quanto a história de Artur Maia, conta um fã, também baixista, que antes do show ele quis conhecer mais detalhes da famosa erva da região. Prevenido, o amigo então lhe presenteou com um maravilhoso “camarão”, o que levou Arturzinho a esbugalhar ainda mais os olhos e exclamar: “Vixe Maria, esse aqui é pra Pai Véio!”. A dúvida é se no caminho até a luminosa entidade, alguma parte do crustáceo foi cremada ou se a linda flor do quereres chegou inteira ao genial destinatário. Viva Gil!

*Jânio Ferreira Soares é Secretário Municipal de Cultura, colunista do Jornal a Tarde, e colaborador do Portal Tribuna Mulungu

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