Paulo Afonso, 27 de abril de 2024

Emiliano José

Theodomiro Romeiro dos Santos : às portas de uma embaixada (VIII)

Theodomiro vagou de um lado a outro do Brasil, conhecendo sertões, sertões da Bahia, depois Rio, e agora no caminho para Brasília, onde entraria numa embaixada, segundo o plano do PCBR.

Seguiam num Opala branco, ar condicionado, um luxo.

Destino: Brasília.

Theodomiro Romeiro dos Santos, um dos sujeitos mais procurados do mundo.

Havia fugido da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, no dia 17 de agosto daquele ano, 1979.

Ditadura não gostou nem um pouquinho.

Caiu no encalço dele.

Nada.

Passou então a acreditar estivesse mundo afora, exterior.

Marco Antônio dirigia o Opala.

Rosa, jornalista, ultra bem documentada, e por isso leia-se: com os documentos dela qualquer porta se abria.

Rosa é nome frio, inventado pelo autor.

Ela ainda não quer ter a identidade revelada.

Os três seguiam no bem-bom.

Um conforto, aquele carro.

E confiantes: caso fossem parados na estrada, só apresentar a documentação de Rosa, e pau na máquina.

Era o dia 29 de outubro de 1979.

Confiando no acordo

Theodomiro vagou de um lado a outro do Brasil, conhecendo sertões, sertões da Bahia, depois Rio de Janeiro, e agora no caminho para Brasília, onde entraria numa embaixada, segundo o plano do PCBR.

Confiava no acordo feito com o PCBR.

A ele, bastava a palavra de Bruno Maranhão, principal dirigente do partido, recém-chegado de longo exílio.

Havia entrado num acordo.

Theodomiro, e disso já falamos anteriormente, não concordava com a ideia de entrar numa embaixada, ser um exilado entre quatro paredes.

Era como se outra prisão.

Não queria mais isso.

Então, o BR, cuja posição era favorável a tal empreitada por conta da óbvia repercussão política, propôs a ele, como uma conciliação: suportasse na embaixada até janeiro de 1980.

Se chegada tal data, e ele não tivesse saído para o exterior, o BR o resgataria.

Seria levado para fora do Brasil pela fronteira.

Este, o acordo.

Na viagem, Theodomiro pensava nisso, esperando fosse curto o período a ser passado na embaixada.

Bruno Maranhão já viajara para Brasília e se movimentava intensamente.

Cabem duas ou três palavras sobre Maranhão.

Pela importância na vida de Theodomiro, tão grande a ponto de ele ter dado nome de Bruno a um dos filhos.

E pelo significado dele na luta revolucionária no Brasil.

Duas ou três palavras porque não se pretende ir muito além, e tomo o cuidado de expressar-me assim porque sei do merecimento dele, à espera de uma boa biografia, se ainda não houver.

Morre em 25 de janeiro de 2014, aos 74 anos.

Usineiro com espírito de pobre

Um dos fundadores do PT em Pernambuco, costumava ser chamado de “usineiro com espírito de pobre”, e de “ovelha negra da família”.

Filho de tradicionais usineiros pernambucanos, cuja família jamais o renegou.

Sempre recebeu a ajuda da mãe.

Revolucionário ousado.

Um dos fundadores do PCBR, um dos impulsionadores da ideia de luta armada por parte do partido.

Não havia outro caminho senão o da luta armada para derrotar a ditadura.

Era o entendimento dele.

Brandia tais argumentos no Comitê Central do partido, integrado por ele, ao lado de monstros sagrados como Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e o mais importante de todos, Mário Alves, assassinado no início de 1970.

Envolveu-se em episódios de muita radicalidade.

E não só na época da ditadura.

Foi acusado de ter promovido a invasão do Congresso Nacional à frente do militantes do Movimento de Libertação dos Sem-Terra (MLST), movimento dissidente do MST, no ano de 2006.

Nessa invasão, janelas de vidro foram quebradas, várias pessoas tiveram de ser socorridas com ferimentos.

Cerca de 200 manifestantes do MLST foram presos em decorrência da invasão.

Bruno não estava presente no ato.

Havia ficado no gabinete do deputado Nelson Pelegrino, esperando tudo acontecer.

E argumentou logo depois ter descido ao local para conter a fúria dos militantes.

Ficou detido por 39 dias no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília.

Sempre coerente.

Radical, ia às raízes das coisas.

Não vacilava nos confrontos.

Disse, numa entrevista: os anos de militância política, tão cheia de episódios cheios de riscos, não chegaram a atenuar o porte e o jeito de usineiro, herdado dos dois lados da família.

Pai e mãe descendiam de ramos diferentes de donos de usina de açúcar, tidos como integrantes da chamada nobreza pernambucana.

Esse porte, no entanto, jamais implicou deixar de lado a preocupação dele com a luta dos trabalhadores.

Vivia conscientemente a contradição:

_Eu sou do casarão e da lona preta dos acampamentos.

A militância dele era toda voltada para uma coerente busca do socialismo, como ele próprio definia.

E completava:

_Sei que não vou viver para ver este dia, mas esses pequenos passos fazem parte do processo.

Um traidor da classe – se diria.

Chico Pinto organizando a operação

Bruno já havia chegado a Brasília e iniciado os esforços para encontrar uma embaixada onde Theodomiro pudesse se refugiar.

Melhor, uma embaixada que lhe concedesse asilo.

Com ele, Maranhão, tentei me desse informações precisas sobre a movimentação dele em Brasília.

Nada.

Ele mantinha, e eu tentei falar com ele bem mais tarde, ditadura já no passado¸ mantinha posturas de clandestino.

Falava muito pouco, parecendo tempo de ditadura.

Tive de informar com outras fontes.

Soube: ele já estivera com Francisco Pinto.

Com este, apesar do espírito conspirativo dele, consegui confirmar as movimentações visando encontra uma embaixada para o asilo.

Os leitores sabem, mas não custa repetir: Chico Pinto era a figura mais destacada do Grupo Autêntico do MDB, depois PMDB.

De uma coragem temerária.

De esquerda.

Prefeito de Feira de Santana quando do golpe de 1964¸ preso então.

Em 1974, condenado a seis meses de prisão por ter feito dura crítica a Pinochet quando da visita dele por ocasião da posse de Geisel.

Mantinha ótimas relações com o PCB, mas estava à esquerda do partido.

Estabeleceu relações com a ala nacionalista do Exército, cuja principal figura era o general Albuquerque Lima.

Cultivava a ideia de uma sublevação à esquerda, ou nacionalista ao menos.

Admirador do general Juan Velasco Alvarado¸ cujo governo, entre 1968 e 1975, fora fortemente nacionalista.

De mentalidade conspirativa, se encontrava aqui, acolá, com um ou outro quadro da esquerda armada¸ sem se vincular a nenhuma organização, nem ao Partidão.

Carreira solo, diríamos.

Carreira solo porque não organizado em nenhum partido de esquerda, mas militante voltado a decisões coletivas, não obstante longe do chamado centralismo democrático.

Tive a honra de coordenar campanha dele para deputado federal em 1978.

Em 1989, no segundo turno das eleições presidenciais, no comício de Lula, no Farol da Barra, em Salvador, impossibilitado de estar presente¸ escalou-me para falar no lugar dele.

Eu era então deputado estadual pelo PMDB.

Éramos muito amigos.

Estou vendo-o fumando, cigarro na piteira, ouvindo atentamente a argumentação de Bruno Maranhão.

Nessas ocasiões, quando em conversas, normalmente à noite, Chico Pinto¸ tinha a mania de cofiar lentamente a espessa barba e de fixar o olhar no interlocutor.

Transmitia maturidade e sabedoria, confiança a quem estava à frente dele.

Depois de relatar tudo, explicar, se preciso fosse, quem era Theodomiro Romeiro dos Santos, os riscos da empreitada, Bruno Maranhão foi direto ao ponto:

_Como fazer para tirar Theo do Brasil?

Chico, cigarro girando nas mãos, assuntando.

Maranhão seguia:

_Em que embaixada ele deveria entrar?

Pinto pediu tempo.

Algum tempo, pouco fosse.

Exigia articulação.

Havia de lidar com os poderes do mundo.

Portas fechadas

Pouca gente tinha a capacidade de articulação de Pinto.

Escola dele, a do velho PSD: a mesma de Tancredo Neves, de Waldir Pires, de Ulysses Guimarães.

Capacidade de negociação, de articulação não se aprende em bancos escolares.

O PSD era uma academia quanto a isso.

Pinto, de esquerda, como era, conseguiu ser secretário-geral do PMDB por anos a fio, homem de confiança de Ulysses, amigo de Tancredo.

Ainda em vida, me falou das articulações voltadas a resolver o problema Theodomiro.

A primeira investida, embaixada de Portugal.

O embaixador, depois de informado sobre de quem se tratava, desconversou.

Falou de inúmeras dificuldades.

Fechou a porta.

Chico foi bater à porta de outras embaixadas.

Todas apresentaram obstáculos.

O argumento principal contra o asilo era o de tratar-se de pessoa com “crime de sangue” nas costas.

Era como chamavam a reação de Theodomiro à prisão, quando acabou por matar o sargento Walder Xavier de Lima, em outubro de 1970.

Aquele era um momento de transição.

Ditadura dava sinais de afrouxar a repressão.

Ainda demoraria seis anos para acabar a ditadura, mas de qualquer forma vivia-se um momento de transição.

Em momento de transição, embaixadores costumam relevar a natureza dos governos, ditatoriais sejam, e ser duros com os militantes cuja história tenha sido de oposição. E mais ainda se tiverem cometido “crimes de sangue”, e a ditadura vivia repetindo, e amaldiçoando, esses crimes, a quem a anistia não alcançaria, como não alcançou.

Chico sentiu a complexidade da empreitada.

Pediu ajuda.

Chamou para junto dele dois parlamentares de confiança: Freitas Nobre e Airton Soares.

Os três conversaram muito, se movimentaram da melhor maneira que puderam.

E ficaram muito preocupados com o volume de negativas.

Embaixadores, sempre polidamente¸ como do praxe da diplomacia, iam negando o asilo a Theodomiro.

Numa das últimas conversas dos três, houve um longo momento de pausa.

Um momento de torpor.

Estalo de Vieira

Pinto olhava pra um e pra outro, cofiava a barba uma, duas, três vezes.

Os três, refletindo.

Pinto acendeu o cigarro, colocou-o na piteira, e de repente rompeu o silêncio:

_Tive uma ideia!

Os dois saíram do torpor, apuraram o ouvido.

_Igreja Católica! – disse Pinto.

_Como­? – no primeiro momento não atinaram.

Pinto explicou.

Face a tantas negativas¸ levar Theodomiro à Nunciatura Apostólica¸ representação diplomática do Vaticano no Brasil.

E nada de anunciar antes.

Chegar de surpresa.

Criar o fato consumado.

Freitas Nobre e Airton Soares exultaram.

Afinal, parecia difícil à Igreja Católica recusar abrigo a um perseguido político, especialmente se tal perseguido corresse risco de vida, como Theodomiro.

Batido o martelo, Chico Pinto avisou Bruno Maranhão.

O dirigente do BR achou ótima ideia.

E além de tudo, tinha de concordar porque havia autorizado Pinto a decidir sobre a operação.

Agora, era seguir o jogo.

Alea jacta est.

Marco Antônio, Rosa e Theodomiro chegaram em Brasília por volta das 9 horas do dia 30 de outubro daquele 1979…

Referências

CARVALHO, Luiz Maklouf. Piauí, agosto de 2007.

CAVALCANTI, Hylda. Rede Brasil Atual, 26/01/2014.

JOSÉ, Emiliano. Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento: segunda parte / Emiliano José.. – São Paulo : Editora Casa Amarela, 2004.

JOSÉ, Emiliano. O cão morde a noite / Emiliano José. – Salvador : EDUFBA, 2020. 426 p.

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