Paulo Afonso, 2 de maio de 2024

Emiliano José

Theodomiro: infância, juventude, PCBR e articulação de fuga (IV)

Pai extremamente conservador, de posições nitidamente fascistas. O capitão costumava dizer: a única solução para o Brasil seria uma ditadura militar. Nunca imaginaria ter um filho militante de esquerda

Nasceu em Natal, 29 de dezembro de 1951. Filho do capitão do Exército Modesto Ferreira dos Santos e da professora Georgina Romeiro dos Santos. Primeiro casamento do capitão, com Maria do Carmo da Silva Romeiro, com quem teve cinco filhos. Morreu no último parto. Passado um ano de luto, o oficial casa-se com a irmã dela, Georgina. Dessa união nasceram mais três filhos. Theodomiro, o mais velho. Família de classe média, pai militar e mãe servidora da União, professora da Aeronáutica. Nunca passou dificuldades na vida, mas também nunca teve existência abastada.

Pai extremamente conservador, de posições nitidamente fascistas. O capitão costumava dizer: a única solução para o Brasil seria uma ditadura militar. Morreu em 1960, e levou para o túmulo a frustração de não participar do golpe de 1964. Certamente, o capitão nunca imaginaria ter um filho militante de esquerda, e isso, felizmente para ele, não chegou a ver. Não viveu para ter tal decepção. A infância de Theodomiro em Natal, até os seis anos aproximadamente, foi feliz.

Naquela primeira metade dos anos 1950, Theodomiro carregava com ele a recordação de uma casa com quintal muito amplo, muitas árvores e animais. Brincou à vontade com coelhos, carneiros, galinhas, uma festa naquele quintal. Pai gostava da criação. Tudo isso ainda era possível numa Natal ainda pequena. Família o matriculou sempre em colégios particulares, protestantes ou católicos, como convinha a pais conservadores e religiosos. A mãe, especialmente. Católica fervorosa. Em 1957, houve mudança para outra casa, à Avenida Marechal Deodoro, à época a principal rua da cidade, onde Theodomiro ficou até 1960, quando o pai morreu, em novembro.

Terminado o primário no Colégio Brasil, faz exame de admissão e ingressa no Colégio Marista, do qual sairá somente depois de concluído o segundo grau, terminado em Salvador, porque já envolvido na vida política. No Marista, sentiu-se a influência do Papa João XXIII, a abertura da Igreja, portas abertas para os movimentos sociais, para as questões políticas. Houve divisão, meio a meio. Metade encastelada nas posições tradicionais, conservadoras. Outra metade, olhando com mais simpatia, embora sem embarcar com muito entusiasmo na atividade de renovação.

Os estudantes, Theodomiro entre eles, começam a participar do movimento assistencial da Igreja. Monta-se uma escola para os trabalhadores da Fábrica Guararapes, confecção muito grande existente em Natal. Envolveram-se também com um trabalho assistencial da Beira do Rio Potengi, onde se localizava uma comunidade muito pobre.

Foi inevitável, nesses trabalhos, deparar com militantes de esquerda. Naquele momento, esquerda rimava com o Partido Comunista Brasileiro (PCB), presente naquelas iniciativas. E foi a partir daquelas experiências o engajamento dele ao movimento estudantil, distanciando-se da perspectiva assistencialista da Igreja.

Natal, como o restante do país, experimentou impressionante ascensão do movimento estudantil em 1968. Agitações de rua, quebra-quebras, passeatas. Várias lideranças do Estado foram presas no Congresso de Ibiúna, da UNE, em São Paulo. Ficaram algum tempo em Natal, e depois soltos e levados por Theodomiro para uma granja nos arredores da capital. Apesar de ainda não ter 18 anos, já dirigia. Utilizou o carro da irmã.

Uma das pessoas levadas por ele, José Gercino Saraiva, militante, logo depois aderiu à repressão. Isso preocupou Theodomiro, e ele resolve então sair do Estado, segundo grau já concluído. Final de 1968, com 16 anos, próximo de completar 17. Melhor ir embora, não queria ser preso. Teve notícias da prisão de dois irmãos maristas, Raimundo Arcanjo e Alberto Hermano, soltos depois de dois meses e transferidos para a Bahia. Convidaram-no para terminar o Científico em Salvador, no Colégio Marista, interno.

Conclui o curso médio na Bahia, no decorrer do ano de 1969. Alberto Hermano o apresentou a outras pessoas de esquerda na capital baiana, vinculadas principalmente às tendências cuja orientação divergia do PCB. Conhece então algumas figuras políticas marcantes. Bruno Maranhão, um dos fundadores do PCBR, homenageado por Theodomiro ao dar o nome dele ao primeiro filho. Marcelo Melo, Paulo Pontes da Silva, os três, naturais de Pernambuco. Da Bahia, Dirceu Régis, oriundo do interior da Bahia, do município de Remanso, e chegado a Salvador havia pouco tempo do Rio de Janeiro, onde fazia universidade. Recrutado pelo PCBR, mora inicialmente num apartamento de subsolo, próximo ao Porto da Barra.

No dia 27 de outubro de 1970, preso. Estava com 18 anos. Passa por torturas na Polícia Federal e no Forte do Barbalho. Ali tornava-se adulto, como lembraria Paulo Pontes, companheiro de prisão dele, caíram juntos no Dique do Tororó. Nas primeiras horas, tanta a tortura, tantas as ameaças, e teve medo da morte, única vez a experimentar essa sensação. Teve medo de deixar a vida assim tão jovem, assassinado por uma ditadura.

Três meses no Barbalho.

Experiência única, a conhecer o terror, a compreender melhor a barbárie do regime militar. Violência, surpresas, decepções. Passado um mês, imaginava não enfrentar mais tortura. Mas, não. O cabo Dalmar Caribé, um dos assassinos do capitão Lamarca, no dia 27 de novembro de 1970, chega à frente da cela dele, pergunta se ele é Theodomiro, e diante da resposta, ele e mais quatro agentes entram e o espancam brutalmente enquanto berravam histericamente.

No mês de dezembro, surpresa e decepção: o embaixador suíço, Giovanni Enrico Bucher é sequestrado pela VPR, ação comandada pelo capitão Carlos Lamarca. Ele e Paulo, na lista dos revolucionários. São levados a tomar banho, barbeados, preparados para a viagem. Uma expectativa de tirar o sono. Nada. Ditadura engrossou, recusou muitos nomes, os para ela inegociáveis, aqueles a permanecer na cadeia.

Theodomiro e Paulo não embarcaram no avião com setenta presos políticos em direção ao Chile. Do dia 7 de dezembro de 1970, quando o embaixador foi sequestrado, até 16 de janeiro do ano seguinte, quarenta dias de inquietação, expectativa sem final feliz para os dois. Tornar-se adulto numa prisão não era fácil. Adulto aos 19 anos, completados em 29 de dezembro de 1970.

No Forte do Barbalho, fica até 26 de janeiro de 1971, quando é transferido para a Penitenciária Lemos Brito, no bairro da Mata Escura, em Salvador. Segue num camburão junto com os militantes do PCBR, companheiros dele no Forte: Wellington Freitas, Dirceu Régis e Paulo Pontes. E ainda eu próprio, preso com eles desde 23 de novembro de 1970. Os cinco do Forte. Chegam à noite. Luzes mortiças desenhavam um cenário sombrio, logo desfeito com a generosa acolhida dos prisioneiros ali recolhidos, todos acusados de subversão.

Theodomiro e Paulo Pontes permanecerão na Galeria F por quase oito anos. Experiência rica, não obstante prisão. Theodomiro convive com um coletivo de prisioneiros políticos de natureza profundamente democrática, capaz de acolher pensamentos diversos, ser rigoroso quando necessário sem nunca ser autoritário, de sempre buscar o consenso, avesso ao sectarismo. Nesse coletivo, Theodomiro era de pouca palavras. Duro, sem perder a ternura. Os anos foram tornando-o mais maduro. Torna-se referência nacional para os presos políticos. É quem dá uma espécie de salvo-conduto ao padre Renzo, em viagem à Europa num trabalho em favor da anistia.

Fuga, novamente a ideia

Theodomiro nunca deixou de lado a ideia de fugir. Chegou o ano de 1979. Ano da anistia. Viria, a anistia viria, ele sabia. Na Galeria F, experimentava uma situação mais relaxada, menos rigorosa. Já conquistara o direito de circular pela vizinhança da penitenciária, além de, não tão raramente, passar o dia inteiro fora, na casa de algum amigo, tomar banho na represa próxima ou até beber uma cerveja num barzinho qualquer da Mata Escura. Voltava sempre para dormir na Galeria F. Mas não foram tais circunstâncias a levá-lo a pensar e articular a fuga. Outras, as razões.

No ar, um clima de abertura política, inclusive a possibilidade muito próximo de uma anistia política. Não obstante, o juiz-auditor Arnaldo Ferreira Lima, em 18 de junho de 1979, nega um pedido de liberdade condicional a Theodomiro, embora do ponto de vista legal tivesse pleno direito a ela. Com uma pena de 16 anos, seis meses e 25 dias, sendo menor de 21 anos quando foi preso, a liberdade condicional se impunha após o cumprimento de um terço da pena – cinco anos de prisão. Tinha saldo, portanto.

Lima, o auditor, era medroso. Chegou a declarar aos jornais não poder sozinho “arcar com a responsabilidade de devolver Theodomiro à sociedade”. Medroso ou cúmplice, parceiro da ditadura. Não fundava a decisão nas razões do Direito, mas na política, estritamente. Sendo um governo militar, melhor segui-lo, de olhos fechados. Justiça daquele tempo, de matriz castrense.

Para Theodomiro, a conjuntura ia se tornando mais e mais delicada, arriscada, perigosa. Havia um clima de abertura, já se disse. Mas, no caso dele, as coisas não andavam no mesmo compasso. O governador Antonio Carlos Magalhães, indicado pela segunda vez pelos militares para governar a Bahia, havia dado sinais estranhos em relação a ele.

Confidenciara, entre ameaçador e conciliador, sem explicar a natureza das afirmações, temer pela segurança de Theodomiro. Não era qualquer um a dizer desse temor. Um dos governantes mais ligados aos militares. Em off, e nós sabemos nunca ser em off, dissera: o caso Theodomiro era um assunto “muito complicado”. E nesse estranho off, tornado público, ele completava:

– Vocês sabem, pode ocorrer uma briga com os presos e acontecer alguma coisa com ele…

Tudo muito estranho, e perigoso. Uma ameaça, não tão velada. Sinais nítidos: condicional negada, um governador insinuando pudesse ele ser morto na prisão, coisa não tão incomum. Viesse a anistia, os demais presos seriam soltos. Ele restaria solitário na Galeria F, sujeito assim a ser morto, por encomenda dos militares, ávidos por vingança, ódio acumulado desde 1970.

Antonio Carlos Magalhães dera a senha. Theodomiro passou a temer pela vida. Justo agora, quando a anistia se aproximava. Aquela anistia não o alcançaria porque negada aos presos políticos autores dos chamados “crimes de sangue”.

Segunda vez a temer a morte.

A primeira, nos dias subsequentes à morte do sargento Walder Xavier de Lima. Seria muito escandaloso matar um jovem como ele, e decidiram recuar. Agora, ele não descartava um crime de mando. Levou a sério a ameaça subjacente presente nas declarações do governador. Sabia da existência de remanescentes da “linha dura”, não obstante tivessem perdido força. Não custava tomarem a iniciativa de eliminá-lo.

Fugir, pensou sempre. Numa primeira tentativa, teve de recuar por falta de condições do PCBR de dar sustentação à empreitada, liderada por presos comuns (ver capítulo II dessa série). De 1978 em diante, começou a pensar novamente, a sério. Mas, em 1979, a ideia ganha contornos urgentes, dramáticos.

Escapar da prisão, nas circunstâncias de então, não era difícil. Já ganhara a confiança da administração da Penitenciária Lemos Brito. Em 1979, o diretor era Mário Moura Conceição. Sujeito de boa índole, honesto, dono de grande senso de humanidade. Indiscutivelmente, o melhor dos muitos diretores a passar pela Lemos Brito enquanto a Galeria F recebeu prisioneiros políticos.

Ano de 1979 iniciado, numa conversa franca, o diretor queixa-se da escassez de funcionários, das dificuldades decorrentes disso. Theodomiro propõe:

– Dispense os três guardas encarregados de nossa Galeria F. Nós cuidamos dela.

Argumentou:

– Aqui somos apenas três presos políticos.

Haroldo Lima, do PCdoB; Paulino Vieira, do PCB, e o próprio Theodomiro.

– Nós mesmos abriremos e fecharemos as celas e a porta gradeada da Galeria.

Diretor gostou da ideia, acatada também pelo guarda-chefe, Cícero Bezerra, presente à conversa. E o regime diário da prisão, para eles, era bastante relaxado. A ameaça do governador, não tão velada, definiu para Theodomiro a imperiosidade da fuga. Tinha convicção: fugir, era fácil. Difíceis, os passos seguintes. Ficar no Brasil? Se ficar, com que estrutura? Durante quanto tempo? Se fugir do país, como?

Conta o segredo primeiro para um padre: Renzo Rossi. Sobre Renzo, escrevi biografia. O mais dedicado, corajoso e solidário padre na relação com os presos políticos de todo o Brasil. Sabia: nele podia confiar. O padre ponderou. Se a repressão o encontrasse, seria inevitavelmente morto.

Theodomiro não estava pondo em discussão se iria ou não fugir. Não havia dúvida: fugiria. Estava somente pedindo ajuda ao sacerdote. Era só dizer se podia ou não ajudar. Renzo, mais tarde, irá me dizer da atitude dele face à convicção daquele jovem com quem construída uma amizade profunda desde 1975:

– Como eu iria recusar auxílio a uma pessoa sob risco de vida?

Eram evidentes, para o padre, os indícios de que Theodomiro poderia ser morto caso restasse solitário na Lemos Brito. Renzo não participou diretamente da fuga, mas auxiliou muito e sabia de tudo, inclusive da data. E, além disso, conseguiu 10 mil dólares para as despesas exigidas na operação pós-fuga, dinheiro conseguido com a Rete Radié Resh, organização italiana de apoio aos palestinos, nascida logo após a Guerra dos Seis Dias, mais tarde aberta também à ajuda aos perseguidos políticos da América Latina.

Renzo estava profundamente articulado com os movimentos de anistia e as organizações de direitos humanos de toda a Europa. Entre maio e novembro de 1978 estivera na Suécia, França, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Polônia, Portugal, Itália e Tchecoslováquia, conversando com dirigentes de tais movimentos, com os exilados, com as direções dos partidos de esquerda sobre a necessidade de uma grande campanha para forçar a conquista da anistia ampla, geral e irrestrita no Brasil, missão recebida dos prisioneiros políticos de todo o país. Agora, tratava-se de ajudar Theodomiro a fugir.

Desde 1978, não ainda com a determinação de 1979, Theodomiro vinha discutindo com o PCBR sobre a fuga. O partido delegou a Renato Afonso de Carvalho a tarefa da conversa. Carvalho sente a urgência da operação. Ouviu de Theodomiro, uma posição quase inflexível: primeiro, queria fugir. Segundo, queria saber das possibilidades de o partido ajudá-lo. Terceiro, defendia a saída do Brasil logo após a fuga. Não pretendia passar um longo tempo numa embaixada, como ocorreu com Jorge Medeiros do Vale, o “Bom Burguês”, quase um ano asilado numa embaixada em Brasília até obter autorização para sair do país.

Para o PCBR, as coisas não eram tão simples. Considerava acertada a fuga. Mas, não a urgência em sair do Brasil. O partido vivia uma fase de reorganização. A intenção de Theodomiro em sair rapidamente do Brasil enfraqueceria o gesto, não contribuiria para o enfraquecimento, desgaste da ditadura. O BR pensava na fuga como uma ação política: fugir, conseguir asilo em uma embaixada, fazer muito barulho, agitação, transformar a fuga e a saída do Brasil em fatos políticos significativos.

Theodomiro e o BR chegaram a um acordo provisório, inicial: ele se abria à possibilidade de ser conquistado pela posição do partido, admitia pudesse vir a considerá-la politicamente mais acertada, e o partido se dispunha, caso ele não se convencesse, a tomar as providências necessárias para a saída dele do Brasil. Tudo que Theodomiro não queria era passar pela experiência de uma nova prisão: pra ele ficar encerrado numa embaixada por muito tempo seria experimentar cadeia novamente.

Tal acordo e a decisão da fuga foram fechados numa reunião entre Renato Afonso e Theodomiro, na praia da Rua K, em Itapoã, no início do mês de agosto de 1979. O BR iniciou uma febril agenda de contatos políticos e diplomáticos, atividades voltadas à montagem de infraestrutura e outras tantas providências. Theodomiro recebe uma cédula de identidade, uma carteira profissional e uma credencial de um clube esportivo, tudo impresso com muito zelo por Emanuel Macedo, militante do partido, dono da gráfica Emita, em Salvador.

Agora, era fugir ou fugir.

Dia 17 de agosto de 1979, uma sexta-feira. Theodomiro levanta-se às 5 da manhã, antes fosse a Penitenciária Lemos Brito tomada pelo barulho infernal dos mais de 600 presos recolhidos ali. Esse, o dia. Controladamente tenso, assim o estado de espírito dele. O plano de fuga, pensado por ele, exigia levantar muito cedo porque o guarda que o veria sair voltaria apenas no dia seguinte, e só então poderia dar pela falta dele. Saísse após as 7 da manhã, o novo plantão ia estranhar a ausência. Vestiu-se sem pressa, pensando na liberdade..

Os comentários não representam a opinião do Tribuna Mulungu. A responsabilidade é do autor da mensagem.

Veja também

Relacionado Posts