Paulo Afonso, 25 de abril de 2024

Emiliano José

Limites da liberdade de expressão e direitos no Brasil

A liberdade de expressão está nas mãos de jornalistas, intelectuais, movimentos, meios de comunicação não vinculados às estruturas monopolistas – nunca da mídia empresarial

É saudável assistir a uma espécie de irrupção na mídia empresarial monopolista de defesa dos direitos da liberdade de expressão. Ficam de fora apenas veículos nitidamente bolsonaristas, avessos à luta pela democracia, favoráveis à política do atual presidente. Escrevo esse texto, provocado pelo Simpósio Baiano de Jornalismo e Literatura, patrocinado pela Academia de Letras da Bahia e pela Associação Bahiana de Imprensa, em Salvador, cuja abertura ocorreu no dia 7 de abril, Dia do Jornalista, sob o título “Limites da liberdade de expressão e direitos hoje, no Brasil”, com a participação dos professores Muniz Sodré, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, de Wilson Gomes, da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, e da minha própria, jornalista e ex-professor também da mesma Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.

Saudável, eu disse. E muito positivo, nesse leito, o envolvimento de instituições como o STF, a tomar iniciativas destinadas a coibir fake news. Subitamente, muito bom que isso esteja ocorrendo. Um surto liberal, aparentemente destinado a reviver o jornalismo em sua vertente mais vigorosa, ancorado na busca da verdade, na defesa da democracia, no respeito à diversidade de fontes, reverenciando normas a vigorar há bem mais de um século e meio, quando o jornalismo em sua face mais contemporânea dá as caras.

Se nos ancorarmos na ideia da democracia, não há como recusar a ideia da mais ampla liberdade de expressão, incluída aí a liberdade de imprensa. E se essa imprensa está fundada no chamado jornalismo objetivo nascido logo após meados do século 19. Saudemos o jornalismo objetivo, não obstante todas as reservas com essa chamada objetividade. Há esforços teóricos consideráveis voltados à tentativa de dar a esse jornalismo estatuto de uma específica forma de conhecimento, e não é minha pretensão aprofundar tais esforços.

Pretendo apenas, a partir de minha intervenção na abertura daquele simpósio, discutir a presença de nossa mídia empresarial monopolista nessa quadra, especialmente no leito dessa onda a favor da liberdade de expressão, situando, do meu ponto de vista, os limites postos a tal onda pela própria natureza dessa mídia, cujo programa político-econômico, fundado vigorosamente no neoliberalismo, não lhe permite ultrapassar o verniz daquela expressão.

Parece uma atitude de estragar a celebração desse movimento. Afinal, face ao atual presidente e sua visão negacionista, genocida, qualquer coisa oposta a ele, parece saudável, e é. Bom tenham alguns meios descoberto a real natureza do governante eleito em 2018. E usar a palavra descoberto é força de expressão porque se há justiça a ser feita ao ocupante do Planalto é ao fato dele nunca ter escondido suas convicções. No governo, ele não apresentou novidades. Mas, vá lá, saudemos, de fato saudemos qualquer combate às pretensões genocidas dele, mínimas sejam.

O que não podemos é fechar os olhos ao que chamo programa político-econômico de nossa mídia empresarial, cuja atuação não consegue disfarçar sua adesão ao golpe de 2016, à eleição de Bolsonaro, sem contar ter sido inteiramente pautada pela Operação Lava Jato e seu herói Sérgio Moro, cujo procedimento criminoso só foi revelado pelo jornalismo, aí sim, jornalismo do The Intercept, largamente apresentado pela Operação Spoofing.

Então, nossa mídia empresarial monopolista só vai até certo ponto, e de modo muito limitado, na defesa da chamada liberdade de expressão. Seus interesses de classe, me permitam a utilização do conceito não obstante seu escasso uso atualmente, impedem-na de um passo adiante, até porque sua  concepção de democracia é obviamente restrita. Tais interesses colocaram-na ao lado de Bolsonaro nas eleições de 2018. O essencial era retirar o PT do poder. O fundamental era interromper o ciclo iniciado em 2003, com a vitória de Lula, com quatro vitórias seguidas da esquerda.

Fosse necessário, um golpe, tudo bem. Viesse Bolsonaro, e não precisava nem tapar o nariz. Chegasse ao poder, houvesse, de parte dessa mídia o esforço para conter os exageros dele, mas nada de mexer em sua proposta econômica, a do rigoroso ataque aos direitos sociais, a todas as conquistas dos trabalhadores, às políticas públicas, inclusive à política de saúde, tão abalada com a PEC do teto de gastos, política apoiada pela mídia, iniciada desde o governo golpista de Michel Temer.

A liberdade de expressão, assim chamada nessa onda liberal, garante os direitos de uma comunicação verdadeira a quem? Essa comunicação não seria também dizer a verdade sobre essa sangria de direitos tão violenta desde que Temer assumiu, e aprofundada com a chegada de Bolsonaro? Evidente. Mas estamos longe disso. Por isso, resisto a essa idealização do chamado jornalismo praticado pela mídia empresarial, cujo conteúdo o mantém preso aos estreitos limites de uma agenda econômica excludente, estimuladora do desemprego e da miséria, dois fenômenos em evidente expansão desde 2016, e não só por conta da pandemia, não obstante exacerbado por ela também.

Sempre resisti a uma atitude inocente diante desse jornalismo, sem desconhecer os méritos dele se considerados os postulados teóricos originais. Esses postulados são sempre confrontados com o quadro estrutural e conjuntural vivido pelos meios de comunicação, sempre submetidos à natureza obviamente política da intervenção deles, seu caráter partidário, tendo sempre lado a defender, e no caso brasileiro não é necessário qualquer esforço para demonstrar de que lado eles têm se mantido, e de modo invariável – não há golpe conservador, de qualquer natureza, onde não haja participação de nossa mídia empresarial.

Na quadra vivida por nós, se é possível encontrar uma parte da mídia empenhada em criticar a natureza negacionista do atual governo federal, a Globo no meio, é facilmente identificável a unidade de toda ela na defesa do programa neoliberal – o centro da preocupação bolsonarista. Não há defesa de direitos,  combate à fome, ao desemprego. Ela toda está ao lado do desmonte de todas as políticas públicas, aquelas construídas desde o início dos anos 1940, e não apenas as construídas durante os governos Lula e Dilma. São essas políticas públicas as garantidoras de direitos, e elas estão sendo implacavelmente destruídas desde 2016, quando do golpe contra Dilma. A cláusula pétrea da mídia empresarial brasileira é a defesa incondicional do neoliberalismo em sua forma mais perversa e cruel.

Naquele debate, então, ao tempo em que saudava qualquer movimento destinado a contrariar o negacionismo bolsonarista, dizia, também: nossa mídia está muito distante de uma atitude positiva diante da liberdade de expressão, de uma atitude destinada a garantir o primado do jornalismo, de assegurar a presença de muitas vozes, a voz dos deserdados, dos excluídos por uma política econômica fundada no rentismo, no privilégio do capital financeiro. Nossa mídia empresarial não é defensora da liberdade de expressão lato senso. Muito menos de direitos das maiorias.

Assim, defendia, defendo: a liberdade de expressão e de direitos está nas mãos dos jornalistas, dos intelectuais, dos movimentos sociais, dos meios de comunicação não vinculados às estruturas monopolistas. Nunca da nossa mídia empresarial. Os jornalistas vivem hoje um momento de transição. Há os assalariados e há aqueles envolvidos com atividades à margem das grandes estruturas empresariais, tentando abrir brechas, envolver-se com a luta pela verdade por outros caminhos. Tanto uns quanto outros são a linha de defesa da liberdade de expressão e dos direitos das maiorias. Se ainda não demos, é hora de dar adeus às ilusões sobre a mídia empresarial quanto às suas convicções liberais e democráticas. A liberdade de expressão e os direitos de toda natureza sempre estiveram nas mãos de quem efetivamente têm compromissos com a democracia. Defenderemos sempre a liberdade de expressão, inclusive a da mídia empresarial. Sem, no entanto, nos iludirmos com ela.

Viva as trabalhadoras e trabalhadores jornalistas.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros.

 

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