Paulo Afonso, 19 de abril de 2024

Educação

Paulo Freire: um político

Paulo Freire: a Prática da Liberdade, Para Além da Alfabetização

Autor: Venício A. Lima

Uma das funestas consequências daquela compreensão mecanicista

da subjetividade era a inteligência igualmente mecanicista da História,

de natureza determinista, em que o futuro era visto como inexorável, virgem,

portanto, de qualquer problematicidade. É na História como possibilidade que a

subjetividade, em relação dialético-contraditória com a objetividade, assume o papel do sujeito

e não só de objeto das transformações do mundo. O futuro deixa, então, de ser inexorável e passa

a ser o que historicamente é: problemático. (A história como possibilidade. Texto escrito por

Paulo Freire a pedido da Radiotelevisão Portuguesa, em 16 de agosto de 1933. In  Pedagogia dos Sonhos Possíveis / Paulo Freire; Ana Maria Araújo Freire (org.) – São Paulo: Unesp, 2001)

 

A ideia de resenha sempre me assusta um pouco. Creio quase no território do impossível dar visão completa de um livro. Quando se fala resenha, leitor espera isso. Verdade verdadeira, a gente lê, relê, e no máximo sente-se no direito de produzir um recorte da obra, alguns comentários. Ainda mais quando se trata de um gigante como Paulo Freire e de outro, Venício Lima. Diante deles, intimidado. Ainda assim, feita a ressalva, sigo adiante. E de pronto, anuncio: Venício Lima privou da amizade e consideração de Freire por duas décadas.

Talvez, e lá vou eu para a lida da tarefa impossível, o mérito principal do livro seja o de tentar tirar Paulo Freire de uma maldição: o de teórico confinado à Educação, especialmente especialista em educação de adultos. Não, não me entendam mal: fosse Freire apenas voltado à Educação, já seria muito. Mereceria do mundo toda a atenção. Muitos, muitos mesmo, o veem assim, e certamente, ao vê-lo assim, dele extraem ensinamentos muito ricos para uma área específica, essencial à humanidade. Que seja.

Mas, não é. Freire sempre recusou essa condição, de modo categórico. A Educação em si mesmo, isolada, não existe. Paulo Freire é muito maior, e tal demonstração é feita pelo livro. Tivéssemos a tentação de classificá-lo como filósofo, não seria de todo equivocado, porque ele é também, de certa maneira, embora não se reclame como tal, um filósofo.

Daqueles, talvez, capazes de superar o filósofo acostumado a apenas interpretar o mundo, como um dia lembrou Marx, e envolver-se profundamente com o mundo, disposto a transformá-lo – quem sabe, pudéssemos dizer um filósofo da práxis, um pensador avesso à torre de marfim, voltado sempre ao contato com os mais pobres, com as classes trabalhadoras.

Por que não pensar em juntar tudo isso – o homem da Educação, o mestre, o filósofo da práxis, pensador, e necessariamente o militante, envolvido pela política, aquela a colocá-lo na cena pública permanentemente? Em Paulo Freire: a Prática da Liberdade, para Além da AlfabetizaçãoVenício Lima caminha nessa direção. Apresenta Paulo Freire como homem da política. Não no sentido mesquinho, diminuído, da pequena política, mas o da grande política.

A ditadura de 1964 o identificou como tal, e ele teve de amargar exílio e perseguições por isso. Por ser homem da política, das grandes questões nacionais, e mundiais, e não apenas por teórico da Educação – e esse apenas vem sempre com cuidado, porque, insisto, fosse apenas isso, já seria muito.

Só o fato de ele fazer da palavra o eixo de todo seu pensamento diz muito de sua identificação com a política. A política não prescinde da palavra. Freire fala da palavra em sentido verdadeiro, vinculada à práxis, do direito de expressar-se e expressar o mundo, criar e recriar o mundo, decidir, optar – e isso é política, inequivocamente. Que Paulo Freire emerge desse livro, se é possível responder?

Um humanista. Incondicionalmente humanista. De arraigado compromisso cristão. Só podendo ser pensado, tal humanismo, enquanto se dê na ação [política] transformadora das estruturas injustas e opressoras. Humanismo a recusar o desespero e o otimismo ingênuo – esperançosamente crítico, porque fundado na política. Humanismo a acreditar na iniciativa do ser humano, na capacidade dele de transformar o mundo, de superar-se, escapar da opressão, chegar a um novo mundo pela política, pela práxis.

Emerge do livro o pensador de filiação cristã e marxista. Capaz de um pacto entre Jacques Maritain e Karel Kosic, a equilibrar–se entre a fé e a religiosidade, a viver uma fé sem religiosidade. Juntar Marx e Cristo: o primeiro, na mundanidade, o segundo, na transcendentalidade. Filosoficamente, um heterodoxo. Um pensador de pensamento sempre contextualizado, voltado à práxis, capaz de conciliar o local e o universal, sintetizar diferentes tradições filosóficas.

Pensador, cuja experiência o fez aprofundar a crítica ao discurso neoliberal e ao capitalismo, sobretudo após ter vivido em África, conhecido sociedades capitalistas historicamente dependentes, como Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Não bastam as reformas do capitalismo. Necessário superá-lo.Não há harmonia possível entre os compradores e vendedores da força de trabalho. Constituem classes sociais antagônicas.

O pensador faz uma concessão: pode acontecer união entre tais classes em situações de emergência. Momentânea, porém. Ultrapassadas as razões do pacto de emergência, o conflito reacende inevitavelmente. Impossível a conciliação entre inconciliáveis. Daí, conclui: o diálogo, tão caro ao pensador, só pode se dar entre iguais e diferentes, nunca entre antagônicos.

A África, a passagem por sociedades libertadas do colonialismo a partir da metade da década de 1970, fonte de muitos ensinamentos, deu ao pensador uma certeza: a libertação das sociedades é um processo social. Tal definição de nação libertada, leva em si a opção pelo socialismo democrático. Vivendo, aprendendo, recusa-se a pensar no fim do sonho socialista. As condições materiais e sociais do sonho socialista persistem: miséria, injustiça, opressão, impossíveis de serem resolvidas sob o capitalismo. Nunca na história o sonho socialista foi tão visível e necessário, não obstante de difícil realização. Visão política e estratégica.

Cedo, o pensador encontra Frantz Fanon. Farol. Sobretudo quanto à violência dos opressores e a resposta dos oprimidos. A violência é lição recebida dos opressores. Aprendida deles, muitas vezes utilizada contra os companheiros pelos próprios oprimidos, a chamada violência horizontal. Toda relação de dominação, de exploração, de opressão, já é, em si, violenta. A classe dominante é quem define a violência – quando o oprimido se insurge contra o opressor, será nominado violento, bárbaro, desumano, frio. Quem inaugura o ódio é a classe dominante – tão atual.

O pensador vai recolhendo ensinamentos. Não esconde, e deve ancorar-se em Marx e Fanon, a tendência dos dominados em seguir os modelos culturais dos dominadores. Em África, a ideologia colonialista invadia escolas, e as crianças e os jovens aprendiam antigas lições – eram seres inferiores. Melhor tentar transformar-se em preto de alma branca – negar assim a cultura e a língua deles.

O pensamento autoritário ao invadir as escolas demonstra a existência de professoras ou professores capazes de guardar dentro de si a sombra do dominador. O arbítrio habita neles. A ideologia dominante invadir o coração e a mente dos dominados é um problema amplo.

Parênteses: tal reflexão guarda consequências políticas de grande dimensão, a possibilitar o entendimento inclusive dos últimos acontecimentos brasileiros. Juntar, talvez, Marx, Fanon, Freire e Marilena Chaui com sua Servidão Voluntária. E elevar a importância da política. A capacidade de analisar correlação de forças. Compreender situações histórico-culturais. Não idealizar movimentos do próprio povo, como se eles fossem lineares, propensos sempre a acompanhar ideias progressistas. Como se não entronizassem, em muitos momentos, às vezes de modo muito forte, o pensamento do dominador, não assimilassem valores profundamente conservadores. As eleições de 2018 são uma lição, se quisermos aprender.

O pensador pensa num antídoto a isso, a essa incorporação de valores dominantes pelos oprimidos. Realizar, no processo educacional, uma espécie de psicanálise histórico-político-social, de modo a expulsar o opressor da alma do oprimido, eliminar a sombra invasora, a ser substituída pela autonomia e responsabilidade de cada um. Um essencial trabalho político-cultural, voltado à mudança de corações e mentes, fundamental a quaisquer mudanças – lição também de Gramsci.

A rica experiência africana fez o pensador defrontar-se com a violência em toda sua crueza. Não a condena nem defende como meio de libertação. As circunstâncias históricas específicas e concretas é que determinarão se a resposta violenta dos oprimidos é necessária ou não. Desenvolve uma singular concepção sobre a resposta violenta dos oprimidos – seria um gesto de amor: concluída a tarefa, pode ser inaugurada uma sociedade do amor. Somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores porque estes, enquanto permanecem opressores, nem libertam, nem se libertam.

O pensador, intelectual orgânico, homem de partido, no sentido ampliado, defende: as lideranças revolucionárias devem confiar na potencialidade das massas. Mas, também, desconfiar, sempre desconfiar da ambiguidade dos oprimidos, do opressor hospedado neles. A experiência dele em África, alicerçou tais convicções – Amílcar Cabral, principal liderança revolucionária de Guiné-Bissau e Cabo Verde, foi assassinado por companheiros.

Insistirá, sempre, no entanto, num recado ao Partido dos Trabalhadores, ele próprio um de seus fundadores: o diálogo com o povo, na ação cultural para a libertação, é condição indispensável para um partido realmente revolucionário. Esse diálogo deve se dar no interior das lutas populares, na intimidade dos movimentos sociais, dos quais não deve se afastar e com os quais deve sempre aprender.

O pensador afasta-se de qualquer pensamento da história como inevitabilidade, sina, destino. A libertação de um povo nunca é ponto de chegada – sempre, ponto de partida. Nunca conhece fim. Crê na natureza humana como vocacionada a ser mais. Essa vocação, no entanto, pode ou não realizar-se. Homem da esperança, crê no ser humano – assim é esse pensador, a emergir do livro. Acredita: ao herdar a experiência adquirida, criar, recriar, responder aos desafios surgidos, discernindo, transcendendo, o homem se lança num domínio que lhe é exclusivo – o da História e da Cultura.

E emerge o homem da comunicação. Tanto pelo lado do educador, onde o diálogo ocupa papel absolutamente essencial, quanto pelo lado do pensador a refletir sobre os meios de comunicação, e a formular um precioso conceito – o da cultura do silêncio, a persistir até os dias atuais como fundamental para entender a lógica do mundo midiático: fazer barulho com os temas caros a ele, e a silenciar aqueles com os quais não compartilha. Conceito a fazer do pensador o pioneiro da ideia da comunicação como direito fundamental dos seres humanos.

Esse conceito é recolhido cuidadosamente por Venício Lima, não apenas nesse livro, mas também no Comunicação e Cultura: as ideias de Paulo Freire, aqui falo da segunda edição, revista e ampliada. E diria tem sido balizador de toda a obra teórica de Lima, tão rica e ácida em relação à nossa mídia, ácida e verdadeira, obra indispensável a quem pretenda ter uma visão abrangente dos nossos meios de comunicação empresariais, sem ingenuidade, sem otimismos fáceis, e onde se encontram, também, os caminhos de superação. E Lima caminha na contramão daqueles estudiosos da comunicação propensos a torcer o nariz diante do conceito.

cultura do silêncio corresponde, como explica Lima neste livro, a um conjunto de representações e comportamentos ou formas de ser, pensar e expressar, que constituem a ambiência da opressão, onde prevalece o tolhimento da voz, a ausência do direito à fala, a inexistência do diálogo, a incomunicabilidade. Corresponde à consciência servil que caracteriza a posição expectante diante da história, o alheamento à coisa pública, o afastamento a qualquer experiência de autogoverno, a tolerância passiva à dominação. Nessa cultura, existir é apenas viver. Pensar é difícil. Dizer a palavra, proibido.

Nela, predomina a ausência da palavra ou a palavra falsa, não há comunicação nem diálogo, nega-se a escuta, condiciona oprimido e opressor, provoca a aderência do oprimido à opressão, entre vários aspectos, e o seu corolário, é o silenciamento, desenvolvido pelo Estado e pelos atuais meios de comunicação. Nessa cultura, não há democracia: a expressão da diversidade e da pluralidade de vozes no espaço público, pré-requisito para a formação de uma opinião pública democrática, permanece bloqueada.

O pensador, ao desenvolver esse conceito, aparentemente pessimista, nunca deixou-se afetar por qualquer fatalismo. Seu pessimismo provavelmente é o mesmo de Romain Rolland, presente em frase tão utilizada por Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade. Analisar a realidade, transformá-lo pela ação política, pela vontade. Lima, ao encerrar o livro, diz com propriedade:

Sem a esperança do verbo esperançar e a utopia de que outro mundo é possível não há como superar os obstáculos que impedem que todas e todos tenham “o direito de autoexpressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade”.

Dito de outra maneira, pela luta político-cultural com decisiva participação das massas populares, é possível superar a cultura do silêncio.

Possível, não inevitável, na linha do pensador. Depende da emergência de uma cultura nacional-popular, transformada em ação política.

Leitura atenta da obra do pensador, rica, inovadora, o livro de Lima alimenta a esperança.

Dá substância ao verbo esperançar.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes)O Cão Morde a Noite, entre outros

Fonte: Teoria e Debate

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