Paulo Afonso, 19 de abril de 2024

Alex Xela

O nordestino e o apego ao seu torrão

Não resta dúvida de que o povo nordestino está tão intimamente ligado ao seu torrão quanto a macaxeira ao solo antes da colheita. É uma ligação umbilical ao ponto de um nordestino até sair da sua região para outra, mas o Nordeste de forma alguma lhe sairá do coração. Utilizo-me de alguns dos meus versos em literatura de cordel para exemplificar esta relação:

Sou da linda Paulo Afonso

A Capital da Energia

O Velho Chico me banha

Com amor e poesia

Sou filho do meu Nordeste

Sou sim um cabra da peste

Do nordeste da Bahia

(Sou filho do meu Nordeste, Encantos Nordestinos, 2021, no prelo)

A nordestinidade, o orgulho de pertencer ao Nordeste, fica evidente ao citar o pertencimento ao lugar nativo (ou de habitação), as riquezas naturais (ou artificiais) que ele possui e a afirmação “Sou filho do meu Nordeste / Sou sim um cabra da peste”, que demonstra um sentimento ufanista. O uso da literatura de cordel como instrumento para transmitir a mensagem também contribui para compreender esse apego, considerando que essa modalidade escrita possui uma maior ligação com os poetas dessa região.

Esta tendência de expressar uma representatividade assumidamente nordestina tem sido uma constante em franca expansão entre os poetas nordestinos da contemporaneidade. Não que retratar a ligação com seu torrão seja algo novo, haja vista Patativa do Assaré (1909-2002), por exemplo, no início do século XX, já demonstrava de maneira efusiva esse relacionamento íntimo, como pode ser visto nesse fragmento do poema “O agregado e o operário”:

Sou poeta agricultor

do interior do Ceará

a desdita, o pranto e a dor

canto aqui e canto acolá

sou amigo do operário

que ganha um pobre salário

e do mendigo indigente

e canto com emoção

o meu querido sertão

e a vida de sua gente.

Neste poema, Patativa evidencia sua condição de homem estritamente ligado à terra par sua sobre(vivência) e o poeta, ainda, não se furta em fazer uma crítica social, que mesmo hoje é bem pertinente.

Vejamos outros quatro escritores contemporâneos que fazem uso de uma escrita que transpira uma forte demonstração de pertencimento à região Nordeste.

O primeiro é poeta cearense Bráulio Bessa, nacionalmente conhecido por sua importante participação semanal em um programa de televisão, no qual propaga a cultura nordestina através da literatura de cordel:

Sou o gibão do vaqueiro,

Sou cuscuz sou rapadura

Sou vida difícil e dura

Sou nordeste brasileiro

Sou cantador violeiro,

Sou alegria ao chover

Sou doutor sem saber ler,

Sou rico sem ser granfino

Quanto mais sou nordestino,

Mais tenho orgulho de ser

(Ser nordestino, Poesia com rapadura, 2017)

Perceba como é evidente o sentimento de pertencimento ao Meio em sua volta ao se associar aos aspectos multiculturais do torrão. O uso repetitivo, como ênfase, do verbo ser no início dos versos cria uma amálgama entre o eu poético nordestino e os aspectos que o circundam. Há um envolvimento tão profundo entre o Ser e o Meio que, por êxtase, transborda o orgulho de pertencer e ser.

A relação demonstrada pelos escritores da região Nordeste para com ela é como a de um casal que as circunstâncias do destino tenta separar, mas que no fim da história são indissociáveis, pois são um parte do outro. Podemos ver um relato dessa relação ultrarromântica nos versos de Francisco José:

Eu saí do sertão

E fui pra cidade grande

Aqui arrumei emprego

E com ele vou passando.

Mas saudades do sertão

No meu peito tá queimando

E como a esperança não morre

Lá pro sertão estou voltando.

Pra rever o meu torrão

Cuidar da minha terrinha

E também da plantação.

(Saudades do Sertão, Na mala do poeta, 2009)

O sentimento de saudade presente no texto aguça o pertencimento ao torrão, à sua terrinha, e como a esperança é o sangue que nutre o sertanejo e mantém sua chama acesa para continuar brilhando em face às adversidades que o clima da região Nordeste impõe ao homo nordestinus.

Esta relação com o Meio se apropria até de quem não é nordestino de nascimento. A escritora carioca Jovelina Ramalho, residente em Paulo Afonso, Bahia, não apenas se encantou com o Nordeste como se deixou seduzir por um dos elementos naturais mais importante da região. Confira:

Numa manhã luminosa

Eu, tu e o amor

Dispo-me e entrego-me a ti

Me enrosco no teu sabor

Tuas carícias me sufocam

Teus beijos e teu tocar

Me fazem flutuar e me desligar do mundo

Estamos em êxtase!

(…)

És o rio São Francisco!

(Sedução do rio, 1ª Antologia dos Poetas de Paulo Afonso, 2020)

O relacionamento do eu lírico com o Velho Chico (apelido do rio São Francisco) ascende a uma esfera de envolvimento carnal e íntimo. Há uma congruência entre o Ser e o Meio que se assemelha a um coito, no qual ambos tem profundo prazer numa relação que se eleva ao êxtase, como se observa no verso “Estamos em êxtase!”

Por fim, esta estrofe do poeta pernambucano Ildebrando Gutemberg:

É, esse é o sertão:

Duro, mas ao mesmo tempo tão cheio de charme e beleza

Tão receptivo, e tão inóspito

Dicotomia que é difícil entender

Mas para aqueles que como eu aqui nasci

Tem o prazer de viver.

(O místico sertão, 7º Encontro de Escritores Canindeenses, 2020)

É, esse é o sertão, esse é o Nordeste e esta é a relação que o nordestino tem com seu torrão. É uma região camaleão no tempo das chuvas, quando o chão duro e a caatinga cinza dão lugar ao verde tão convidativo, quando a passarada canta mais alto e as cachoeiras dos riachos roncam mais forte, quando se revela mais intensamente todo charme e beleza de uma região tão incompreendida por quem aqui não vive ou não conhece. É sim de uma dicotomia difícil de entender, mas ficou percebido através dos poemas citados até aqui, que para quem vive no Nordeste há uma relação prazerosa, da qual o nordestino pode até tentar se desfazer, mas a ela ele acaba se rendendo intensamente porque o Meio para o nordestino é mais que um lugar para viver, é um órgão vital para sua sobrevivência.

Para pausar essa prosa e me despedir, quero compartilhar mais alguns versos do meu poema Sou filho do meu Nordeste:

Agradeço ao Deus do céu

Pelo dom da salvação

Por Patativa, Ariano

A sanfona e Gonzagão

Sou filho do meu Nordeste

Sou sim um cabra da peste

Nordeste de coração

*Alex Xela Lima é professor, escritor, revisor e antologista baiano de Paulo Afonso. Membro da União Brasileira de Escritores, dentre outras academias, e colunista do portal Tribuna Mulungu.

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