Paulo Afonso, 18 de abril de 2024

Jânio Ferreira

As portas de Marisa Monte e as minhas

Por: Janio Ferreira Soares

A casa de minha avó Aristéia era mais ou menos no padrão das que existiam em Glória e nas demais cidades violentamente varridas do mapa pelas represas erguidas no sertão do São Francisco (“Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé, adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir”).

Do lado direito de quem chegava havia uma sala com sofá, cadeiras, centro e um quadro do Sagrado Coração de Jesus na parede. Na sequência, um corredor com duas portas à esquerda e três à direita antecedia um quartinho onde eram guardados os foguetes pra festejar Santo Antônio. Do lado, a sala de jantar, um alpendre com panelas penduradas tilintando ao vento, cozinha, quintal e um portão que dava num rio correndo solto pra despencar nas cachoeiras de Paulo Afonso e de lá, tibum no mar.

Lembrei-me disso ao ouvir “Portas”, música que nomeia o novo disco de Marisa Monte e que me fez azeitar com óleo Singer as enferrujadas dobradiças do passado pra poder escancará-las de novo sem o risco de acordar velhos fantasmas que, de vez em quando, puxavam a ponta do meu lençol. Antes, porém, um miniparágrafo wikipediano.

Marisa é uma dessas raras exceções no meio artístico. Extremamente discreta, no lugar de ficar postando fotos de biquíni pra ganhar espaços nas redes ela aproveita o tempo pra descobrir novos talentos, a exemplo da artista plástica Marcela Cantuária – autora do belo conceito visual do disco -, e de Chico Brown, filho de Carlinhos e neto de Chico Buarque, que na companhia de outros músicos e compositores da pesada dão o tom exato no seu último e ótimo trabalho.

Pois bem, se você chegou até aqui é porque está interessado em saber aonde essas portas vão dar. Na canção (composta por Marisa, Arnaldo Antunes e Dadi) a tendência inicial é escolher a melhor. Mas depois vem à sábia decisão de experimentar todas, já que, de alguma forma, elas vão dar em algum lugar. E mesmo que lá na frente bata um arrependimento por ter girado a maçaneta errada, há sempre à alternativa da volta. Porém, o mais importante é deixá-las constantemente abertas, pra que o vento renove a atmosfera do nosso corredor.

Quanto às minhas, a maioria dava nos quartos por onde passaram avós, tios, tias, maridos e agregados. E das lembranças que ainda pulsam, me vem o cheiro de alfazema das solteiras sonhando com o altar da igreja ao lado; a angústia daquelas que partiam de branco e depois voltavam enlutadas com as alianças dos maridos nos dedos; o ruído das contas dos terços tentando aplacar pecados e serenar desejos; o cheiro de pólvora na hora em que os foguetes subiam; o som dos flandres das bacias assim que os primeiros pingos das goteiras caíam.

“Portanto, meritíssimo, já que meu cliente ribeirinho espontaneamente admite que as portas de sua infância foram cúmplices na sua formação, aproveito a chance da rima e, diante de vossa linda e esvoaçante toga, imploro: prenda ele não!”.

 

*Janio Ferreira Soares é Secretario Municipal de Cultura de Paulo Afonso, Cronista do Jornal À Tarde e colaborador do Portal Tribuna Mulungu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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